Pablo Neruda: "... las infinitas estrellas, la soledad inmensa". Fragmento.

Viagem pelas costas do mundo

Começei a viver em tantos lugares e em tantas horas diferentes da nossa época, que não sei por onde começar: se pelo grande ou pelo pequeno, pelo de dentro ou pelo de fora, se pelo casaco ou pelo coração. Tudo vai fundido dentro da gente, fora da gente, as vidas e os nascimentos, fazendo um círculo de folhas, de lágrimas, de conhecimento, de lembranças. E a vida de um homem é como a existência de um dia: a poeira treme à passagem da luz central, a vegetação acumula o seu misterioso alimento feito de atmosfera e de profundidade, passam cantos de crianças, de bêbados, de coveiros, soam as cozinhas do mundo, transportam os feridos pelo mar, por intermináveis trens, as máquinas de escrever, as prensas, os motores vão se fundindo num crepúsculo de onde o dia vai desaparecendo, como um pequeno ciclista num longo caminho, e não fica senão a noite permanente, as infinitas estrelas, a solidão imensa.


Pablo Neruda

CÓDIGO FLORESTAL: QUESTÃO DE VIDA E MORTE

Quem hoje é vivo, corre perigo!



Do Documento de Aparecida:

A eliminação das florestas e da biodiversidade, e a contaminação das águas "transformam as regiões exploradas em imensos desertos" e colocam "em perigo a vida de milhões de pessoas" (DAp 473).
A causa desse colapso ecológico está no "atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela natureza" (DAp 473). Esse modelo "subordina a preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos à biodiversidade, com o esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança climática" (DAp 66).
A Igreja convoca toda a humanidade "para criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e sirva ao bem comum" (DAp 475). "A melhor forma de respeitar a natureza é promover uma ecologia humana aberta à transcendência [...]. O senhor entregou o mundo para todos, para as gerações presentes e futuras" (DAp 126).

Código Florestal e assassinato de ambientalistas

Pouca-vergonha!


Na noite de 24 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou alterações do Código Florestal que significam não apenas uma derrota do governo (muito enfatizada pelos jornais), mas uma derrota do bom senso e da razão do “bem viver” do povo brasileiro. O texto da emenda permite atividades agrícolas em Áreas de Preservação Permanente (APP), autoriza a participação dos Estados na regularização ambiental e anistia os que se enriqueceram, ilegalmente, com o desmatamento até junho de 2008.
Não basta o governo derramar lágrimas de crocodilo e chamar a votação uma vergonha. Também Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco são uma vergonha. Também o mensalão e a “Projeto”, superconsultoria milionária do ainda ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, que reuniu empresas como Itaú Unibanco, Pão de Açúcar, Íbis, LG, Samsung, Claro-Embratel, TIM, Oi Hyundai Naval, Volkswagen, Gol, Toyota, Siemens, Amil e Santander, são uma vergonha. Há um concubinato vergonhoso entre governo e oposição. Vivemos um clima político de pouca-vergonha e muita violência.


Agrobanditismo
A imputação recíproca de vergonha se materializou, muito além da Câmara dos deputados, no sudeste do Pará. A coordenação nacional da CPT divulga Nota Pública sobre o assassinato do casal Maria do Espirito Santo da Silva e José Cláudio Ribeiro da Silva. O assassinato ocorreu na manhã do dia 24 de maio, no município de Nova Ipixuna (PA). A nota da CPT destaca que "Esta é mais uma das ações do agrobanditismo e mais uma das mortes anunciadas. O casal já vinha recebendo ameaças de morte. O nome deles constava da lista de ameaçados de morte registrada e divulgada pela CPT. [...] Esta lista, junto com a dos assassinatos no campo de 1985 a 2010 foi entregue ao Ministro da Justiça, no ano passado. Mas nenhuma providência foi tomada”.

Maria do Espírito Santo
e José Cláudio
José Cláudio e Maria do Espírito Santo se dirigiam de moto para a sede do município, localizada a 45 km, ao passarem por uma ponte, em péssimas condições de trafegabilidade, foram alvejados com vários tiros de escopeta e revólver calibre 38, disparados por dois pistoleiros que se encontravam de tocaia dentro do mato na cabeceira da ponte. Os dois ambientalistas morreram no local. “Os pistoleiros cortaram uma das orelhas de José Cláudio e a levaram como prova do crime”, comunicou a CPT de Marabá, que esteve no local do crime.
José Cláudio e Maria do Espírito Santo foram pioneiros na criação da reserva extrativista do Assentamento Praia Alta Piranheira no ano de 1997. Devido à riqueza em madeira, a reserva era constantemente invadida por madeireiros e pressionada por fazendeiros que pretendiam expandir a criação de gado no local.
“Mas nossa indignação aumentou com a notícia, veiculada pelo jornal Valor Econômico do dia de hoje, 25, de que o deputado José Sarney Filho ao ler, em plenário, a reportagem da morte dos dois lutadores do povo, foi vaiado por alguns deputados ruralistas e pessoas presentes nas galerias da Câmara Federal, que lá estavam para acompanhar a votação do novo Código Florestal”, diz a Nota da CPT.

Adelino Ramos
Dia 27 de maio, o líder do Movimento Camponês Corumbiara, Adelino Ramos, conhecido como Dinho, foi assassinado, em Vista Alegre do Abunã (RO). Segundo a assessoria da Secretaria de Produção do Amazonas, o agricultor morava em um assentamento do Incra localizado no sul de Lábrea, o município mais desmatado do Amazonas e onde se concentram grandes interesses de madeireiras.



Indignem-se!


Há uma conexão nefasta entre as alterações do Código Florestal, o assassinato do casal ambientalista e o líder do Movimento Camponês Corumbiara, Adelino Ramos. A Coordenação Nacional da CPT reafirma a responsabilidade do Estado por estes crimes. "A vida das pessoas e os bens da natureza nada valem se estes se interpuserem como obstáculo ao decantado `crescimento econômico´, defendido pelos sucessivos governos federais, pelos legisladores do Congresso Nacional que aprovam leis que promovem maior destruição do meio ambiente, e pelo judiciário sempre muito ágil em atender os reclamos da elite agrária, mas mais que lento para julgar os crimes contra os camponeses e camponesas e seus aliados. A certeza da impunidade alimenta a violência” (Coordenação Nacional da CPT, Goiânia, 25 de maio de 2011). A constatação da vergonha não basta. Precisamos mobilizar a indignação. Indignem-se!

Morreu Abdias do Nascimento: o combate à discriminação racial continua


Guerreiro por um mundo de iguais

Aos 97 anos, o protagonista do combate à discriminação racial, Abdias do Nascimento, morreu na noite de 23 de maio, no Rio de Janeiro. Nascido na cidade de Franca, SP, em 14 de março de 1914, desde cedo se iniciou na militância do movimento negro contra o racismo. Abdias do Nascimento, com seus múltiplos dons, chegou a exercer os ofícios de deputado e senador, escritor e poeta, professor e artista plástico, Secretário de Estado de Direitos Humanos e da Cidadania (Rio de Janeiro, 1999). Em 1937 e em 1941, por causa de sua postura política, é preso na Penitenciária da Frei Caneca e na Penitenciária de Carandiru, respectivamente. Em 1984, Abdias do Nascimento cria, junto com um grupo de intelectuais e militantes negros, a Fundação Afro-Brasileira de Arte, Educação e Cultura (FUNAFRO), integrando o IPEAFRO, o Teatro Experimental do Negro (TEN), a revista Afrodiaspora, e o Museu de Arte Negra. Já com 86 anos, foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade Federal da Bahia. Na ocasião, em seu discurso de agradecimento, invocou Exu, o senhor da contradição. Só ele “seria capaz de me colocar aqui nesta situação. Recebo um título de doutor da mesma academia que há décadas venho questionando e contestando por sua postura de marginalizar, humilhar, desprezar e discriminar o povo afrodescendente. Pois reitero: continuo questionando e contestando a academia brasileira. [...]
Abdias do Nascimento (1914-2011)
Não estou falando apenas da admissão de alunos negros, embora este seja um aspecto necessário em todo o país. Falo, sobretudo, do que eles e os outros alunos vão aprender. O conhecimento formal e científico sempre discorreu sobre nós, retratando os povos africanos e seus descendentes como escravos natos, objetos de pesquisa científica, ratos de laboratório.

Aqui mesmo na Faculdade de Medicina desta universidade, sob a égide de Nina Rodrigues, papa das teses lombrosianas no Brasil, mediu-se nossos crânios para calcular o índice cefálico; dimensionou-se a largura da nossa narina como prova cabal de nosso suposto estado patológico congênito; negou-se a nossa arte enquanto produção criativa taxando-a da representação deformada de uma mentalidade primitiva e doentia.

A psiquiatria de Nina Rodrigues, desenvolvida nesta instituição, julgava nossa religião uma manifestação de patologia mental. A Faculdade criou e ostentou, durante muitos anos, uma das mais monstruosas peças da didática racista conhecidas no Brasil: a exposição de objetos sagrados do nosso culto junto a armas usadas em homicídios e outros instrumentos de crimes, ao lado das cabeças de cangaceiros degolados e de fetos defeituosos, os chamados "monstros da degenerescência" das teorias eugenistas.

As peças sagradas, muitas confiscadas pela polícia, simbolizavam um dos mais caros projetos de Nina Rodrigues: o controle psiquiátrico da religiosidade afro-brasileira. A exposição, transferida à Secretaria de Segurança Pública, lá ficou intacta até o ano passado como testemunha muda do implícito endosso das autoridades científicas às lições embutidas na sua configuração.

É preciso virar esse conhecimento eurocentrista de cabeça para baixo, sacudi-lo até remover o lixo e construir no vazio uma nova epistemologia. Incorporar-lhe a experiência e o saber dos povos afrodescendentes em suas várias dimensões, vistos da sua ótica e expressos na sua própria voz, possibilitando a reconstrução da civilização e da soberania dos nossos antepassados no Continente e o redimensionamento das culturas e histórias de luta forjadas por nós, seus descendentes, na diáspora. [..]”

Em Brasília, Abdias do Nascimento é homenageado, pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, na sua 4ª Conferência Nacional, realizada em 11 de dezembro de 2002, como personalidade destacada na história dos direitos humanos no Brasil. 26 de maio, o corpo do guerreiro e construtor da igualdade racial foi velado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Homenagem a Abdias do Nascimento





Domingo, dia 22 de maio. Beatificação da Irmã Dulce na cidade de Salvador/BA.

Dulce, brasileira, baiana, beata

Nascida em 26 de maio de 1914 em Salvador e batizada como Maria Rita Lopes Pontes, a Ir. Dulce, da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, numa cerimônia no Parque de Exposições de Salvador, foi declarada “beata”.

Madre Teresa e Ir. Dulce:
Afinidade evangélica
A trajetória da Irmã Dulce lembra o trabalho caritativo da Madre Teresa de Calcutá: vidas dedicadas aos pobres, doentes, esquecidos em sociedades de opulência de classes sociais privilegiadas.

Ir. Dulce morreu em 13 de março de 1992, aos 77 anos. O milagre documentado, que permitiu a sua beatificação, ocorreu em janeiro de 2001. A senhora Claudia Santos de Araújo sofreu uma grave hemorragia durante o parto e ficou em estado de coma. Os médicos deram a ela poucas horas de vida. Um sacerdote, amigo da família, pediu a intercessão da Irmã Dulce e em poucas horas a parturiente se recuperou milagrosamente. Os médicos não conseguiram explicar o que havia ocorrido.
  As Obras Sociais Irmã Dulce continuam o trabalho abençoado da beata, atendendo milhares de pobres na Bahia. Se depois da beatificação for comprovado o segundo milagre por sua intercessão, a Irmã Dulce pode se tornar - ao lado do primeiro santo brasileiro, Frei Antonio de Sant'Anna Galvão (1739-1822), canonizado em 11 de maio de 2007 - a primeira santa brasileira, oficialmente reconhecida pelas instâncias da Cúria Romana. A memória da beata será, liturgicamente, celebrada sempre no dia 13 de agosto, dia dos seus votos reigiosos.

A radical opção pelos pobres e doentes da Ir. Dulce, num país de riquezas e prosperidade, é um apelo permanente aos políticos de criar estruturas de justiça para todos. A Irmã Dulce mostrou, que a baiana não só tem "saia engomada", mas que "tem graça como ninguém...!"
 

Nota da Assembléia Regional do Cimi


Povos Indígenas do Maranhão lutam pelo Bem Viver

O Conselho Indigenista Missionário, Regional Maranhão, reunido em sua XXXIII Assembléia Regional, nos dias 18 a 20 de maio, na cidade de São Luis/MA, para refletir sobre o tema “A Mãe Terra clama pelo Bem Viver”, vem a público manifestar sua preocupação com o momento que atravessam os povos indígenas no estado do Maranhão.


Jovem Gavião de olho nas promessas políticas
  O Cimi Regional Maranhão, junto com Movimentos Sociais e representantes dos povos indígenas Guajajara, Ka’apor e Gavião/Pukobyê, constatou que vivemos a realidade política de “dois estados”: o oficial, propagandeado pelo governo “De volta ao trabalho” na mídia que está ao seu serviço, e o Maranhão, não oficial, dos povos indígenas, dos quilombolas, dos lavradores e trabalhadores rurais, dos ribeirinhos, pescadores que produzem e vivem da terra.[...]

Reafirmamos a nossa aliança com os Povos indígenas Canela Apaniekrá, Guajajara, Gavião e Awá-Guajá, bem como, o nosso compromisso de manter o apoio à luta destes povos para a demarcação das Terras Indígenas Porquinhos, Bacurizinho, Governador e Awá, cujos procedimentos administrativos estão paralisados desde o início de 2011, por conta das pressões de grupos políticos e econômicos do estado.
Denunciamos a existência de uma campanha difamatória no Estado do Maranhão que reforça o racismo, o preconceito e um sentimento de ódio contra os povos indígenas que estão lutando pela garantia da vida em suas terras e pela recuperação de seus territórios. [...]

Denunciamos igualmente a omissão do Governo Federal e do Estado brasileiro de proteger os grupos de Awá-Guajá, sem contato com a sociedade envolvente, que correm risco de extinção por conta do aumento da exploração ilegal de madeira nas T.I. Awá, Caru, Alto Turiaçú e Araribóia. [...]
D. Sebastião Lima Duarte,
responsável da Pastoral
Indígena no Maranhão (NE 5)
  Junto com os Povos da Terra, reafirmamos o nosso compromisso com causa indígena na construção de um Bem Viver, de novas relações entre homem e natureza, onde o projeto de vida de cada povo fundamentada na gratuidade, na partilha, no respeito ao outro, da autodeterminação dos povos sejam considerados e respeitados.
D. Sebastião: seriedade jovial
São Luis, MA, 20 de maio de 2011.
Conselho Indigenista Missionário – Regional Maranhão
[cf. a íntegra da Nota: www.cimi.org.br ] 


A Nota do Cimi deve ser lida no contexto da Carta dos bispos do Estado de Maranhão, do 14 de fevereiro 2011, dirigida a todas as pessoas que atuam na defesa e na promoção da vida. Transcrevemos um trecho significativo dessa Carta sobre "uma inversão de prioridades e valores", que se encontra na íntegra no sitio do Regional Nordeste 5 (NE 5), Maranhão, da CNBB: www.cnbbne5.org.br

"Sentimos que chegou a hora de não mais aceitar que se jogue com os sentimentos e as expectativas de nosso povo, vendendo-lhe promessas mirabolantes de que tudo, a partir de agora, vai melhorar. Estamos às vésperas da comemoração dos quatrocentos anos da chegada dos europeus a essas terras. É um momento oportuno de se fazer um resgate histórico das formas de luta por liberdade, de resistência à escravidão, de testemunho de coerência de grupos sociais e de evangelizadores que têm marcado positivamente a história de nosso Estado. Esse resgate nos ajudará a fortalecer um projeto popular independente e soberano.

 A história do Brasil – na qual se insere a história do Maranhão – tem sido marcada pela apropriação por parte de pequenos grupos, mediante influências políticas e corrupção ativa, daquilo que pertence a todos. Esses pequenos grupos fazem do bem público um patrimônio pessoal. Talvez por esse motivo, a maioria da população cuide tão mal de nossas praças e ruas, de nossas escolas e hospitais, de tudo aquilo que deveria estar a serviço de todos. Seria talvez uma maneira de reagir – certamente equivocada – a esse tipo de apropriação indébita.
 Para inaugurar um novo momento histórico, precisamos nos educar para um trato totalmente novo, mais ético, com o bem comum. Sentimos que chegou a hora de se fazer uma radical inversão de prioridades e valores. Não podemos deixar que o Estado continue colocando sua estrutura a serviço quase exclusivo dos grandes exportadores de minério, de soja, de sucos e carnes, construindo-lhes as infra-estruturas necessárias para obter sempre maiores dividendos. Ao contrário, ou paralelamente a isto, os aparatos do Estado devem estar a serviço da integridade humana de todos os seus cidadãos e cidadãs.
 Preocupa-nos sobremaneira que, em nome de um ilusório e equivocado desenvolvimento, entendido de forma redutiva como desenvolvimento exclusivamente econômico – e não na sua acepção integral –, empresários, quadrilhas de colarinho branco, setores do Estado e do Judiciário pisoteiem direitos básicos, transgridam impunemente normas ambientais, desconsiderem medidas básicas de prevenção de saúde pública, agridam povos e territórios tradicionais, rios, matas e seres vivos em geral.
 É urgente que produzamos sinais de uma nova sociedade na qual se proceda efetivamente a uma “inversão de prioridades”, investindo-se maciçamente em saneamento básico universal, em água potável, na distribuição equânime de terras férteis para quem trabalha nela, em unidades hospitalares para todos, em educação formal de qualidade. Está na hora de se fazer uma inversão de prioridades e valores também em relação ao papel do Estado e de seus representantes. Estes estejam em permanente escuta da sociedade civil, dos movimentos sociais, do povo e das suas legítimas aspirações e propostas para um verdadeiro bem comum."


XXXII Assembleia Regional do Cimi Maranhão em São Luís

A Mãe Terra clama pelo Bem Viver


Cleber Buzatto, secretário adjunto do
Cimi, Brasília, e D. Sebastião Lima
Duarte, bispo de Viana
Entre os dias 17 a 20 de maio de 2011, o Regional Maranhão realiza sua Assembleia em torno da temática “Terra” e “Qualidade de Vida” para os povos indígenas da região. Face ao grito dos povos indígenas por terra, dignidade e justiça, a Igreja missionária maranhense, ligada ao Cimi, organiza suas atividades e fortalece a sua mística em torno do lema: “A Mãe Terra clama pelo Bem Viver”. Do Cimi Nacional participarão do evento o secretário adjunto, Cleber Buzatto, e o assessor teológico, Paulo Suess. Para aprofundar a temática, oferecemos dois subsídios: para a análises da conjuntura, a entrevista que D. Tomás Balduíno recentemente deu à “Revista do Brasil” (I) e um texto, que Paulo Suess escreveu para a Agenda Latino-Americana de 2012 (II).



I.
A lógica da transformação
Entrevista de Cida de Oliveira com Dom Tomás Balduíno



Foto: Pablo de Regino
O que mudou no tratamento do homem do campo da ditadura até hoje?
Superamos um estado de repressão, de desaparecimento, de matança. Eles não brincavam em serviço. Mas o golpe foi dado prioritariamente para quebrar a espinha dorsal das organizações camponesas, porque eles achavam que elas eram a porta de entrada do comunismo internacional. Não sei se os militares faziam isso (por conta própria) ou se eram orientados pelos Estados Unidos. Eles generalizavam porque eram partidos de esquerda que organizavam os trabalhadores. Foi por isso que nasceu a CPT: havia repressão aos trabalhadores rurais e aos indígenas. Então a Igreja entrou em cena. O MST nasceu nesse tempo, embaixo do guarda-chuva das igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base, e cresceu com a abertura lenta e gradual. Assim como as organizações indígenas, que cresceram muito. Hoje há muitas organizações, autônomas. E isso é que é bonito: a Igreja com a opção pelos pobres. A gente não discutia com eles, apoiava.
Hoje há mais de 300 conflitos envolvendo indígenas, trabalhadores rurais e quilombolas. A questão da terra está longe de ser resolvida?
Os povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio. O cerrado, escolhido para o avanço da monocultura, foi tomado primeiro pela soja e está sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto para a celulose, entre outras culturas. Isso preocupa muito porque, embora seja de grande importância para o equilíbrio ecológico do país e da América Latina, é um bioma desvalorizado pelo capital, tratado como área de exploração. Suas plantas funcionam como reservatórios de água do nosso país. Se o cerrado for arrasado pela monocultura, haverá desequilíbrio.
Qual a razão desse interesse no cerrado?
Porque o terreno em geral é plano, com vegetação frágil, tortuosa, pequena, não dificulta o trabalho das máquinas. O que não acontece na floresta, onde é mais complicado desmatar em pouco tempo para fazer campos de monocultura até perder de vista. O desmatamento do cerrado prejudica o sistema freático. A rama, a copa das plantas, tem o correspondente em raiz – que funciona como uma esponja, uma caixa d’água, alimentando o freático e a planta durante a estiagem. Se arrancá-la, o circuito da água deixa de ser vertical, em direção ao freático, e torna-se horizontal, causando erosão, assoreamento de córregos e rios.
Mas há alternativas que garantam maior produção em menor área plantada?
Há várias alternativas à destruição da vegetação nativa que vão em direção oposta à chamada revolução verde (o plantio de eucaliptos em grandes extensões). Aparentemente são bonitas as grandes extensões verdes, que produzem o suficiente para alimentar o mundo, não é? Mas isso é um engano. A revolução verde foi pensada para substituir aquilo que existia antes, onde entra o trator que corrige a terra, aduba, põe calcário, semente, tudo de uma forma mecânica, pesada. Embora a cobertura seja verde, é na verdade um deserto verde. Esse modelo destrói o meio ambiente, acaba com as nascentes, leva à seca. Na Bacia do São Francisco, onde há plantação de eucalipto, ficaram secas 1.500 pequenas vertentes que fluíam para o São Francisco.
Há quem defenda que monoculturas como a do eucalipto só ocasionam problemas quando não há manejo correto.
Há mil justificativas para a manutenção desse modelo que destrói o bioma em troca de dinheiro, divisas. Mas não se buscam alternativas técnicas. Nós temos em Goiás, Tocantins, Bahia, Minas, grupos extrativistas organizados, que convivem com o cerrado sem destruí-lo. São todos desconsiderados. O que realmente interessa ao governo, bem como aos anteriores, é o agronegócio que passa por cima das pequenas propriedades mas não mata a fome, porque seu objetivo não é distribuir, mas concentrar, sobretudo o lucro. Está comprovado que 70% do alimento consumido no país vem dos pequenos produtores.
E quanto à energia?
Com a energia é a mesma coisa. Insiste-se no mesmo modelo, seja de usina hidrelétrica, seja de nuclear. Ficam de lado outras possibilidades, como a energia solar, que alimenta diversas cidades na Alemanha. O excedente das casas vai para as redes de distribuição. É claro que isso requer pesquisas, abertura ao entendimento e resistência às pressões do mercado. Às vezes, o governo segue uma linha predatória, prejudicial aos povos indígenas, por exemplo, porque sofre pressão fortíssima de conglomerados econômicos nacionais e internacionais. Por que tem de prevalecer a lógica da superprodução? O índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística, afetiva. Não é transformada violentamente, depredada, arrasada, destruída¬ em nome da produção, do ter cada vez mais. O povo da terra do semiárido também tem consciência do valor e da riqueza da caatinga, em oposição ao capital. Durante muito tempo, prevalecia a proposta dos versos de Luiz Gonzaga, de ir embora dali. Agora eles estão descobrindo que o semiárido tem água, um total de 37 bilhões de metros cúbicos. Segundo técnicos, isso prova o equívoco da transposição do São Francisco, um investimento caríssimo para levar água ao Nordeste. Mas lá não falta água, e sim política governamental para distribuir essa água que está concentrada. Uma vez distribuída, alimenta tudo. Com a transposição do São Francisco, vão ser levados 3 bilhões de metros cúbicos para uma região que tem 37 bilhões. Se com 37 bilhões não se resolve o problema da seca, como é que 3 bilhões vão resolver?
Os acidentes nucleares no Japão põem em xeque os projetos de construção de usinas atômicas como os previstos no Nordeste?
Um desenvolvimento “de ponta”, né? Bem no momento em que o mundo começa a repensar esse modelo nuclear para a produção de energia. O Japão, por exemplo, que na conferência do clima em Cancún lutou para anular o Tratado de Kyoto e não ter de reduzir as emissões de poluentes nem o lucro, tem um modelo mundialmente questionado. Suas usinas não resistiram aos terremotos, têm vazamentos e passaram a ser uma ameaça à população. Independentemente de estar no Nordeste, no Centro-Oeste, Sudeste ou Japão, é o modelo que está sendo questionado pelos melhores técnicos, por todos aqueles que eram a favor e agora são contra. É o feitiço que se volta contra o feiticeiro. Acredito que brevemente toda a humanidade estará esclarecida e terá uma consciência contrária a respeito. Por enquanto são grupos mais seletos, cientistas que começam a repensar a coisa. A consciência ecológica, aliás, é um ganho para a humanidade, um avanço como a conquista da igualdade dos direitos da mulher, que custou séculos para chegar a esse ponto e deve ser aprimorada, mas é uma conquista.
Qual é o modelo que o senhor defende? Menos produção, consumo e conforto?
Isso mesmo. É necessário tudo isso que se busca? O conforto dos Estados Unidos pode ser aplicado a uma população de 6 bilhões, mas a terra é insuficiente, e isso mostra que tem algo errado aí. Como pensar num mundo e numa humanidade equilibrados e sustentáveis? Produzindo de acordo com a necessidade. Uma coisa é a necessidade em que todos participem. Outra, é atender a um modelo superpredador de determinados países do Primeiro Mundo. Então, volto à pergunta anterior. Não seria a hora de questionar o modelo vigente e dar a palavra à população camponesa, ao indígena?
A CPT conta com apoio do Vaticano?
O Vaticano está muito longe. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), à qual pertence a CPT, é um organismo suficiente para resolver o problema pastoral, eclesial. A CPT nasceu assim, da Igreja, e não para a Igreja, a serviço do trabalhador do campo. Como o bom samaritano que se dá para levantar o caído, dando a ele autonomia para se erguer e um dia levantar outro caído, tratando-o como sujeito, e não objeto da nossa ação caritativa. A Pastoral Indigenista segue o mesmo princípio, de dar todo o auxílio a uma população que sofre repressão, vive em conflito com o roubo da terra e a expulsão do campo pelas autoridades armadas para deixar o terreno livre para a monocultura do grande capital. A terra pode ser de japonês, americano, alemão, desde que seja do capital. Não pode ser dos índios, dos lavradores, senão vem a polícia e despeja. São milhares de ações de despejo no nosso Judiciário contra quem ocupa a terra há vários anos de forma pacífica.
Como o senhor avalia a impunidade no campo? Dorothy Stang, Corumbiara, Eldorado dos Carajás...
Entre 1985 e 1996, a CPT fez um levantamento sobre os assassinatos no campo por disputa pela terra. São assassinatos encomendados pelo latifúndio. Raramente aparece o mandante. Há o pistoleiro que é contratado, faz o serviço e recebe. Nesses 11 anos do estudo, foram constatados cerca de mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados. Dos mandantes, só sete foram condenados e cinco fugiram. Os pistoleiros que escaparam na certa voltaram a matar. É o quadro da impunidade. Eu participei de uma sessão do Supremo Tribunal Federal em que se julgava a possibilidade de federalizar os crimes contra os direitos humanos. Era justamente na época do assassinato da Dorothy. Como envolvia vítima internacional, norte-americana, o estado do Pará agilizou o processo, que está praticamente concluído. Muito boa a Justiça naquele caso. E nos demais? E naqueles em que o assassinado não é norte-americano ou alemão? Isso tem favorecido a manutenção do crime, o que interessa aos grandes fazendeiros, a muitos detentores do poder, juízes, latifundiários e parlamentares. E, por falar em parlamentar, a proposta de confisco da terra onde há trabalho escravo, para fins de reforma agrária, não caminha. Acho que com esse time que está aí, de congressistas latifundiários, uma bancada ruralista fortíssima e numerosa, jamais será aprovada.
O que o senhor acha da atualização do Código Florestal?
É um desastre, um absurdo diminuir a já pequena cobertura vegetal em torno dos mananciais, facilitar a devastação da floresta e não oferecer nenhuma proteção ao meio ambiente. A gente sabe que nem todas as pessoas no Congresso concordam com isso. Pena que sejam minoria.
Como o senhor vê o fato de termos pela primeira vez uma mulher na Presidência da República?
É muito positivo, mas não deixa de ser um continuísmo, um tempo de inverno para o movimento de reforma agrária. E, com o avanço do agronegócio, pior ainda. Do ponto de vista do homem da terra, ainda há retrocesso. Durante a campanha, ela nada falou sobre reforma agrária, o que pode ser significativo. Embora tapeasse e protelasse, dizendo que ia cumprir as promessas de campanha, Lula dialogava e não reprimia, ao contrário de FHC. Em compensação, durante os anos FHC os movimentos se fortaleceram, com todo o grande capital por trás. É que, conhecendo o adversário, isso fica mais fácil. Tanto que a oposição ao governo tucano foi feita mais pelos movimentos do que pelo PT. Mais do que enrolar, Lula traiu o compromisso de fazer a reforma agrária, que acabou ficando por conta dos movimentos via ocupações e pressões das bases, e não do Incra, cada vez mais sucateado.
E quanto aos transgênicos?
O transgênico é sério porque atinge a semente, e ela é a força do lavrador. Em vez de manipular sua semente para plantar, ele tem de ir ao mercado e pagar (por ela). O pessoal diz que tudo o que é transgênico é duvidoso, não se tem segurança. Mas nós, da área rural do CPT e os trabalhadores rurais, consideramos que o principal veneno é o fato de a semente ser subtraída. Aquilo que é vital para o trabalhador, e é milenar, ser levado ao monopólio. O trabalhador tem de ter o domínio da semente e da terra.
O senhor já recebeu ameaças de morte?
Várias vezes. E tive medo não por mim, mas por outros padres, sacerdotes. Ninguém vinha direto a mim, mas estimulavam gente maluca. Eu soube de vários planos de morte, como uma emboscada numa festa em que iria, numa paróquia, mas fui ao sepultamento do padre Rodolfo e do índio Simão, assassinados por fazendeiros. Toda noite rezo para o padre Rodolfo, que me salvou de uma emboscada. Soube também que na ditadura fui vigiado durante todo o tempo. Pior é quando é pistoleiro, como aquele que atirou no padre Chicão, um defensor dos sem-terra, que levou tiro de cartucheira no rosto e ficou cego dos dois olhos. Sei que aquele tiro era para mim. Mas é complicado matar um bispo. Escapei, e agradeço ao Chicão.
[fonte: Revista do Brasil - Edição 59 - Maio de 2011]

II.
Bem Viver - Sumak kawsay
Horizonte, plataforma, aliança

O paradigma sumak kawsay, de origem quéchua, aponta para o horizonte do bem viver tradicional do mundo andino. Em suas Constituições, Bolívia e Equador retomaram esse conceito e o procuraram contextualizar no mundo de hoje, como projeto alternativo ao desenvolvimentismo das economias globalizadas. Os intérpretes do sumak kawsay apontam para seu caráter processual, crítico, plural e democrático. O sumak kawsay deve ser compreendido como plataforma política com um horizonte utópico e como aliança de diferentes culturas e múltiplos setores, dispostos a construir novas relações sociais na base de uma nova relação com a natureza.

Utopia migrante
Ao contrário do que se espera, a utopia é uma migrante de países prósperos, que dela supostamente não mais necessitam, a países pobres. O discurso político hegemônico despreza a grande narrativa que resiste à redução da palavra a manchetes de jornais, slogans de propaganda ou palavras de ordem. Nessa grande narrativa, com seu índice utópico que não se dissolve no pragmatismo cotidiano, ressoa a causa universal e a crítica dos que não se conformam com o mundo assim como é. Essa causa questiona os imperativos agressivos da sociedade de consumo com suas exigências de crescimento, produção acelerada e prazer instantâneo. Enfeitiçados pelos meios de comunicação, que fazem estimar o opressor, perdoar ao corrupto e desprezar o oprimido, assistimos a um rebaixamento do espírito revolucionário de um proletariado aburguesado, sindicatos burocratizados e líderes populares incorporados em máquinas administrativas de governos supostamente progressistas.
Também as Igrejas, que teriam a oferecer um grande capital contracultural, que ao mesmo tempo questiona a cultura hegemônica e valoriza as culturas marginalizadas, se acomodaram no interior do sistema, em troca do reconhecimento de sua liberdade institucional e do seu prestígio histórico. Mas essa acomodação tem um preço alto: a perda do espírito crítico ad extra e ad intra, ou seja, a corrosão lenta e silenciosa de seu espírito profético e a percepção da diferença entre ideal e realidade.
Espírito crítico significa ter consciência dessa diferença entre a ordem implantada e a proposta constitucional que precedeu à implantação dessa ordem. Na ordem implantada não se trata apenas da ordem representada pelos Estados e seus governos. Também as Igrejas fazem parte dessa ordem histórica implantada que necessita, sempre de novo, de um olhar crítico. Nos templos religiosos existe, igualmente, uma diferença entre leis em vigor por ordem divina e leis obedecidas através de práticas institucionais, uma diferença entre proposta evangélica e resposta institucional.
Muitos devem lembrar-se, ainda, da indignação desses setores face aos pedidos de perdão que o então papa João Paulo II pronunciou em diversas ocasiões a judeus, africanos e indígenas. Quando na IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, de Santo Domingo (1992), surgiu a proposta de um pedido coletivo de perdão aos povos indígenas, o arcebispo de San Juan de Cuyo, Argentina, Italo Severino Di Stéfano, em sua resposta no dia 19 de outubro de 1992, declarou que um tal pedido seria inoportuno, porque poderia ser explorado por setores ideológicos e por refletir um complexo de culpa que diminui o ardor da nova evangelização.
Dois dias mais tarde, no dia 21, durante a Audiência Geral, em Roma, o Papa pronunciou-se sobre a oportunidade de um pedido de perdão: "A oração do Redentor se dirige ao Pai e ao mesmo tempo aos homens, aos quais se têm feito muitas injustiças. A estes homens não cessamos de perdir-lhes 'perdão'. Este pedido de perdão se dirige, sobretudo, aos primeiros habitantes da nova terra, aos 'índios', e também àqueles que, como escravos, foram deportados da África para trabalhos pesados. 'Perdoai-nos as nossas ofensas': também esta oração faz parte da evangelização (...)."
A diferença entre o insuficiente da realidade eclesial e sua promessa, entre a ordem reinante e a verdade eterna é legitimamente apontada por setores da sociedade secular e da própria Igreja que zelam com lealdade pela conformação, nunca plena, da instituição com seu fundador Jesus Messias. A precariedade da realidade eclesial, quando é acolhida com humildade e o desejo de perdão, poderia honrar a instituição que não negocia seus ideais na esquina do mal menor, mas que se lembra deles, pronunciando seu mea culpa.
Como vimos em Santo Domingo, nem sempre este zelo de profetas, teólogos e pastores foi bem recebido por setores que vivem em certa distância com o dia a dia do povo de Deus. Suas teologias são descontextualizadas e oferecem respostas a perguntas secundárias. Esta foi a razão porque, num determinado momento, a Teologia da Libertação e a Teologia Índia, entre outras, foram induzidas ao silêncio por setores que consideravam Medellín (1968) um acidente na história da Igreja. A Teologia Índia, por exemplo, não significa uma ruptura com a tradição da Igreja. Pelo contrário, trata-se da assunção de tradições milenares e do enraizamento do evangelho nessas culturas. A assunção, segundo o Santo Irineu, é a propedêutica da redenção (cf. Puebla 400). Ainda hoje, aproximadamente quarenta anos depois de Medellín, no “Documento de Aparecida” (2007), a simples menção dessas teologias, que representam a graça profética pós-conciliar da Igreja latino-americana, era vetada. Se os teólogos se tornam funcionários institucionais e não defensores dos aflitos, a teologia degenera em ideologia.
Mas o vinho novo da causa do Reino não cabe nem acaba nos odres velhos (cf. Mt 9,17) de uma funcionalidade sistêmica. A condenação oficial à clandestinidade gera traumas, mas também forja linguagens estratégicas in off. A profecia pode migrar para outros espaços e siglas, entre os quais, hoje, reconhecemos o sumak kawsay – o bem viver, do mundo quéchua. O que a Encíclica Pacem in terris, de João XXIII, o Vaticano II e Medellín designaram “sinais do tempo” – a emancipação dos operários, dos países colonizados e das mulheres -, na realidade foram lutas evangélicas abandonadas nas Igrejas. Reapareceram metamorfoseadas no mundo secular, porque em seu berço eclesial não encontraram espaços de moradia nem de hospedagem passageira. No horizonte da utopia do Reino, todos somos posseiros de esperança sem ter a posse da verdade. A sua posse seria o fim da história. A esperança continua como eterna migrante em busca da verdade no meio dos desesperados.
Felicidade, dignidade, ressurreição
Segundo Ernst Bloch, as utopias sociais do bem viver, com seu ponto de gravidade no sistema econômico, visam à felicidade ou ao menos à redução da fome e da miséria. As utopias do direito natural, com seu ponto de gravidade no campo cultural jurídico dos direitos humanos, visam à dignidade, à cabeça erguida e à proteção legal de liberdade e segurança. A vida concreta é ameaçada em ambos os campos: pela fome e pelo desprezo ou, como Marx diria, na base e na superestrutura. O primado da dignidade humana exige a prioridade dada à libertação econômica. Entre ambos, há uma relação de meios e fins.
O sofrimento dos pequenos – dos sobrecarregados que passam fome e dos desprezados que sofrem humilhação – aponta para os desafios éticos da humanidade, causados pela aceleração da destrutividade do capital. E é este sofrimento que pode mudar o rumo da história, o sofrimento autorreflexivo e organizado, que gera nos pobres discernimento e consciência sobre o sofrimento que pode ser evitado e aquele inerente à condição humana. Os nomes concretos desses desafios éticos são: esgotamento dos recursos humanos e naturais e manipulação genética e psicológica no interior e em função do mercado total. Daí, emergem tarefas urgentes de transformação: a redistribuição dos bens de acordo com as potencialidades do planeta Terra, o reconhecimento do ”Outro” no horizonte de uma harmonia universal e a participação democrática de todos, sem privilégios de classe.
Mas, para a utopia que articula felicidade e dignidade falta ainda algo para configurar o bem viver. Afastados fome e desprezo da vida humana, esta ainda está ameaçada pela apropriação privilegiada de alguns. Portanto, o bem viver precisa ser pensado para todos e, ao ser pensado para todos, necessita como terceiro elemento da justiça distributiva e redistributiva. O terceiro elemento utópico, a justiça, nos faz lembrar, concretamente, daqueles que morreram injustiçados. O horizonte utópico inclui, ao lado de felicidade e dignidade, não a justiça dos vencedores e sobreviventes, mas a justiça dos injustiçados, vivos ou mortos. O Messias virá quando houver para todos lugar na mesa. Mas ele virá também como memória daqueles que, castigados por fome e desprezo, caíram no túmulo do esquecimento. A justiça para todos é impensável sem a graça da ressurreição dos mortos e de um juízo final (cf. Spe salvi, n. 43s). A história da humanidade mostrou, que o anseio da ressurreição e a vitória sobre a morte reuniu médicos e xamãs, teólogos e filósofos numa batalha que, até hoje, não está vencida nem perdida. Ela está presente em quase todas as culturas e pode alocar-se em imaginários muito diferentes. A partir do tripé – felicidade, dignidade, continuidade da vida –, compreendemos que o sumak kawsay sempre será projeto, horizonte e esperança perigosa.
Paulo Suess

Seminário "Grandes Obras e Migrações" no Instituto Teológico São Paulo (ITESP)

Grandes Obras e Migrações

Alexandre Nunes

No último dia 13 foi realizado no ITESP- Instituto Teológico de São Paulo, o seminário “Grandes Obras e Migrações” organizado pelo SPM – Serviço Pastoral dos Migrantes; CEM – Centro de Estudos Migratórios; CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios; CETESP – Comissão de Estudantes de Teologia e Ciências da Religião de São Paulo e ITESP.

O seminário abordou a temática dos deslocamentos populacionais provocados por grandes obras de desenvolvimento – como barragens, usinas hidrelétricas e portos – sob o ponto de vista de pesquisadores, movimentos sociais, pastorais da Igreja e do governo.

Participaram do debate figuras ilustres como Dom Demétrio Valentini, Dr. Heinz Dieter Heidemann, Dom Antonio Possamai, Dom Luís Flávio Cappio, Talita de Souza Correia, Marilda aparecida de Menezes, Carlos Bernardo Vainer, Arsenio Oswaldo Sevá Filho e Luiz Dalla Costa.



Quem abriu os trabalhos foi o Presidente do SPM, bispo de Jales e Presidente da Cáritas Brasileira, D. Demétrio Valentini. Ele abordou temas como o Código Florestal, sustentabilidade e alertou que os legisladores não sabem diferenciar vertentes de córregos, riachos e rios. “Igualar 10 metros com ½ palmo d’água é ignorar a realidade”, afirmou.

Depois a palavra foi passada a D. Antonio Possamai, bispo emérito de Ji- Paraná e referência para as atuais lutas de preservação ambiental e justiça social da região.


Ele iniciou lembrando que a História da humanidade foi marcada por sucessivas migrações (mudanças climáticas, fome, guerras, perseguições, religião e agora grandes projetos).

Sobre a Amazônia, Dom Possamai explicou que os grandes projetos são decididos fora da Amazônia e ela sempre foi vista como lugar de tirar, extrair. Ele também mostrou que a visão do Regime Militar, época da grande migração à Amazônia era a de “terra sem gente para gente sem terra, ignorando os índios, quilombolas e nativos que não eram considerados humanos.

Sobre a Amazônia atualmente, ele afirmou que os responsáveis pelo seu desmatamento não são os pequenos produtores, mas sim os grandes madeireiros, fazendeiros e mineradores.

Quando abordou a construção das hidroelétricas na região, D. Possamai fez um questionamento: Por que a civilização moderna é insaciável por energia?

Dom Frei Luís Flávio Cappio, Bispo de Barra/BA, que realizou a peregrinação do São Franscisco, caminhando por um ano da nascente a foz e que fez duas greves de fome em protesto ao projeto da transposição do Rio São Francisco iniciou sua explanação lembrando que os migrantes nordestinos que vieram para São Paulo, tinham o intuito de melhorar suas condições de vida e isso o fez ir ao nordeste para conhecer a sua realidade e ali acabou conhecendo muito mais sobre o Rio São Francisco, que, segundo ele, é a garantia de subsistência da população. “O rio é o pai e a mãe de milhões de seres humanos, o povo se asperge, se benze no contato com a água de seu rio.

 


Conheceu este projeto com uma caminhada por suas margens entre 04 de outubro de 1993 e 04 de outubro de 1994, da nascente na Serra da Canastra a sua foz entre Alagoas e Sergipe. Ele percebeu que o projeto que, segundo o governo, era de levar água ao povo, na verdade é garantir a segurança hídrica dos grandes projetos agroindustriais. “Trata-se de uma obra socialmente injusta”, reclama.



16 de maio: Dia do Gari - Obrigado!

Profissionais da “invisibilidade social”

Os garis diariamente estão espalhados pelas ruas da cidade, com uniformes que destacam suas presenças, mas geralmente não são vistos. Não recebem um bom dia e muitas vezes são ignorados por quem anda nas ruas.
O gari enfrenta o drama da “invisibilidade pública” e social, ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde se enxerga somente a função e não a pessoa.

A profissão de gari surgiu no tempo do Império, na cidade do Rio de Janeiro. Tudo começou quando um empresário chamado Aleixo Gary assinou contrato com o governo para organizar o serviço de limpeza das ruas e praias da cidade.

De lá pra cá, os coletores de lixo trabalham todos os dias com seriedade e dedicação, apesar da profissão ser árdua e da jornada de trabalho ser penosa.

Dailane Santana

Primeiro Encontro Diocesano "Fé e Política" de Jundiaí, SP

TRIPÉ DA EVANGELIZAÇÃO:
PALAVRA, AÇÃO POLÍTICO-SOCIAL, CELEBRAÇÃO
Paulo Suess

     O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres (Evangelii nuntiandi, 41).
     Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo (DAp 393).
Os sinos de Jundiaí:
convocação para "Fé e Política"
Todos os serviços prestados pela diocese, suas paróquias e comunidades à população carente da nossa sociedade em nome do Evangelho e da Igreja são serviços pastorais. Como serviços pastorais, são serviços de evangelização. A dioceses, como Igreja samaritana, evangeliza e, como toda a Igreja, precisa ser evangelizada. A articulação entre fé e política, entre a palavra, a celebração sacramental e o horizonte de sentido aponta para a dignidade de vida das pessoas como criaturas de Deus, para o cuidado com o planeta terra como obra de Deus e para a Vida em abundância, que chamamos a realização histórica e escatológica do Reino de Deus. Ao responder a duas pessoas sobre o alcance da vida eterna, Jesus esclareceu essa questão. Ao jovem rico aconselhou distribuir seus bens entre os pobres e ao doutor da Lei recomendou, na parábola do Bom Samaritano, ajudar aqueles que caíram nas mãos do ladrão.
1. Princípios
A discussão sobre a evangelização explícita e a implícita não tem data de vencimento. Ela marca tradicionalmente a relação entre dois setores pastorais da Igreja em busca de sua convergência, entre a pastoral catequético-sacramental e a pastoral social. O forte, não o monopólio, da primeira é o anúncio, e o da segunda, o testemunho e a diaconia. Ambos não são “departamentos” isolados, mas articulados no interior de uma Igreja samaritana, muito enfatizada no Documento de Aparecida (DAp): “Iluminados pelo Cristo, o sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana, recordando que a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã” (DAp 26).
Os serviços pastorais da Igreja, a sua diaconia no anúncio da palavra como na prática de solidariedade, são seguimento do Verbo encarnado. Através de ambos os serviços entramos “na vida e na missão d´Aquele que `se aniquilou a Si mesmo, tomando a forma de servo´ (Fil 2,7)” (Ad Gentes, 24; cf. Gaudium et Spes, 32; Lumen Gentium, 8). No conjunto da ação pastoral diocesana, cada serviço é serviço pastoral que envolve uma atividade específica (moradores de rua, creche, reciclagem, vocações, confessionário), integral (material e espiritual), contextual (rua, favela, cidade, campo) e universal. Universal quer dizer que os nossos serviços estão interligados pelos vasos capilares da Boa-Nova e do Reino. Ao contrário do sistema capitalista, com sua divisão funcional de trabalho, com setores hierarquizados e sua lei da concorrência, entre nós, o sucesso de uma pastoral favorece as demais. Nossa atividade pastoral, que é apostólica e profética, exige que tenhamos zelo pelo outro, não ciúme; “exige que anunciemos Jesus Cristo e a Boa-Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e fomentemos o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico” (DAp 95). Nem a catequese sem testemunho de vida nem a diaconia sem práxis sacramental e anúncio da “razão da nossa esperança” (1 Pdr 3,15) são coerentes com o Evangelho e relevantes para o mundo. Nós somos esperança num mundo de desesperados!
2. Dificuldades
Aquilo que pelos princípios está claro e consensual pode, na prática das nossas atividades sociais, mostrar unilateralidades. Desde o Vaticano II, a preocupação de muitas pastorais sociais aponta para dois problemas:
Domingo de formação permanente:
Fé e Política
Primeiro, como podemos evitar de nos tornarmos uma ONG, um “substituto caricatural dos movimentos sociais” e um “apêndice dos aparelhos burocráticos do Estado”? O serviço pastoral pode secularizar-se e perder a inspiração de sua raiz evangélica.
Segundo, o grande peso que a ”luta“ e o “„projeto“ têm na vida dos militantes causa, às vezes, um desgaste unilateral entre os pólos que constituem uma vida em sua inteireza. A vida do agente de pastoral ativista pode assemelhar-se a um pneu de carro mal calibrado ou não alinhado. Enquanto o carro roda, adia-se a revisão na oficina. É fácil prever o desandamento do carro na próxima curva.
Qual é o lugar de “fé e política” na busca da eficácia do seu serviço aos pobres e no seu alcance meramente simbólico, entre eficiência e gratuidade? Os pólos que constituem a vida inteira – razão e emoção, espírito e matéria, trabalho e lazer, luta e contemplação, individual e coletivo – criam tensão, mas geram também luz. O preço da luz é a tensão entre os pólos. As pastorais sociais têm as suas compensações, mas também o seu preço. Se o zelo pelo bem-estar do outro ultrapassa os nossos limites, o desencantamento e o estresse poderão bater à nossa porta. Cuidar dos outros exige também cuidar de si mesmo. Cuidar de nós pode significar recontextualizar-nos a cada dia em casa, na fraternidade e na capela, que são fontes de energia para a nossa presença encarnada no mundo: “Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece” (DAp 176).
3. Eixos
“Fé e política” orientados para os mais necessitados, estão comprometidos com os grandes conflitos do mundo de hoje: com a redistribuição dos bens e o reconhecimento do outro. Os impulsos norteadores do nosso serviço, a partir do Evangelho e do nosso Carisma, que não brotam de uma ideologia política, mas da nossa fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo.
A partir daí, surgem dois eixos que atravessam o trabalho social como duplo sinal. O trabalho articulado na dimensão de “fé e política” nos permitem perceber a pastoral como um sinal de contradição e um sinal simbólico. Nossa pastoral é um “sinal de contradição” (Lc 2,34) em relação ao espírito da nossa época e às ideologias hegemônicas do consumo, da acumulação e da concorrência eliminatória, e, ao mesmo tempo, todos os nossos serviços são um sinal simbólico se considerarmos o alcance transformador desse serviço em nossa sociedade. Como “resistentes”, estamos na contramão do sistema e da sociedade, como “servos de Cristo Jesus” (Ro 1,1) somos sempre “servos inúteis” (Lc 17,10).
Estamos na contramão porque a ética cristã vai além da ética culturalmente correta. Quem nasce com Jesus Cristo ao pé da cruz e na força do Espírito Santo, desconfia dos brilhantes falsos dos vencedores. Definitivamente, nós não somos vencedores e a teologia pastoral não é uma “teologia da prosperidade”. Os nossos serviços são, como os milagres de Jesus, sinais que apontam para transformações que não podemos produzir. Jesus não curou todos os leprosos. Também a diocese optou por alguns serviços em que procura “excelência”, articulando a graça de Deus com a obra humana. Nossos serviços são “pingos de gratuidade”, “sinais de justiça” e “imagens de esperança”.
Em dois lugares significativos do Evangelho, Jesus exige algo mais, algo maior do que estava prescrito no código ético, nas normas constitucionais, nas leis casuísticas e nos ritos tradicionais do seu povo. Nas bem-aventuranças, que representam o novo código ético dos cristãos, e na Última Ceia, no discurso-testamento de despedida, do Evangelho de João, em que Jesus de Nazaré propõe uma revisão radical dos valores hegemônicos de seu tempo. Nele, anuncia como núcleo central de seu “Evangelho do Reino” (Mt 4,23) não só a conversão intra-sistêmica, mas a ruptura com aquele sistema religioso-político que não redime, mas, pelo contrário, escraviza. “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20). Nos trâmites da justiça, não somos juiz entre as partes, mas “advogado da justiça dos pobres” (DAp 395, 533).
Para não cair nas ciladas dos justiceiros, dos zelotes e dos fundamentalistas fanáticos, a maior justiça exige o amor maior. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). No mundo competitivo e excludente, onde tudo vale somente pelo seu preço de mercado, a missão no mundo está vinculada à derrota do reino da necessidade e à recuperação de um espaço e projeto alternativos de não-mercado e gratuidade. A justiça maior e o amor maior rompem com a lógica do sistema e com as acomodações produzidas na vida de cada um. A comunidade missionária confia na atração de seu testemunho gratuito. Seu "marketing" dispensa propaganda e armas. Não somos caçadores de borboletas, mas jardineiros. “Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho” (DAp 31).
A gratuidade nos impulsiona necessariamente à simplicidade institucional. Somente estruturas leves permitem pensar em gratuidade. Estruturas pesadas são muito caras. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples, transparente, portátil. O caminhar no Espírito é um caminhar desarmado e despojado. Conversão e transformação autênticas tornam as pessoas mais simples. “Quando vos mandei sem bolsa, sem mochila e sem calçado, faltou-vos, porventura, alguma coisa?” (Lc 22,35). A gratuidade, microestruturalmente vivida na contramão do sistema, aponta para a possibilidade de um mundo para todos (cf. DAp 540).